FUTEBOL NUM MUNDO GLOBAL – CASO PORTUGUÊS E FRANCÊS
Texto: JOÃO GIÃO
Num mundo tendencialmente globalizante e em que tudo nos parece familiar há, ainda, em muitas áreas, particularidades que as diferenciam. O desporto, o futebol e o jogo são um exemplo (talvez por sermos profissionais da área essas diferenças nos saltem mais à vista) que aqui trago tendo por base a minha experiência no futebol francês e português.
“TODA E QUALQUER ÁREA É INFLUENCIADA PELO MEIO EM QUE SE INSERE”
Toda e qualquer área é influenciada pelo meio em que se insere, e se é verdade que dentro desta aldeia global, França e Portugal têm uma matriz muito comum, até pela proximidade geográfica, política, histórica (passado colonial pertinente para desenvolvermos este tema), também é verdade que mantêm diferenças sociais e económicas entre outras que influenciam o que os nossos olhos veem no campo.
Olhemos para a génese da formação de jogadores para compreendermos como evoluiu a indústria nos dois países e como se carateriza o produto final, treino e jogo.
França foi pioneira no desenvolvimento de centros de treino e constituição de academias desde a década de 50, atingindo o seu apogeu com as academias de Auxerre e Nantes nas décadas de 80/90 e mais recentemente com o Lyon a destacar-se. O futebol francês tem a particularidade de ser mais competitivo entre clubes e academias de grande e média dimensão, não existindo assimetrias tão claras no que a capacidade de investimento, infraestruturas e dimensão social diz respeito por comparação a Portugal. Este maior equilíbrio de fatores torna os campeonatos jovens e profissionais muito competitivos, onde por exemplo, equipas de formação de clubes do National 1 (equivalente à Liga 3 em Portugal) equilibram jogos com as equipas de formação dos clubes da Ligue Un, inclusivamente as mais fortes e o vencedor é realmente imprevisível. Se recorrermos à composição, por exemplo, da seleção campeã do mundo em 2018, de entre os 23 jogadores inscritos, estavam representados 16 clubes formadores diferentes (considere- se clube onde cada jogador passou mais tempo durante o seu processo de formação), sendo que entre os mais representados estavam Le Havre e Lyon com 3 jogadores cada, PSG, Troyes e Grenoble com 2, sendo que os restantes tinham apenas 1 jogador representado. Na mesma competição, e por oposição completa, Portugal tinha por exemplo 11 jogadores formados no Sporting.
Considero mesmo que esta competitividade, aliada às já referidas infraestruturas que se mantêm, ao dia de hoje, de muito boa qualidade, capacidade de investimento e base de recrutamento continuam a permitir que França continue a ser uma referência na produção e exportação de jogadores, sendo, por exemplo, o país que mais exporta jogadores para a Premier League.
Explorando estes fatores diferenciadores que continuam a potenciar o futebol francês enquanto indústria, a base de recrutamento é sem dúvida um fator critico de sucesso.
Regressando à caracterização do ambiente enquanto agente influenciador, como referido acima, França é um país com uma base de recrutamento assinalável, não só em número como em diversidade, tendo um largo campo de recrutamento de jogadores de origem africana, por exemplo, quer da África Subsariana, com as suas incríveis capacidades físicas, quer da África do Norte, onde a técnica e a criatividade imperam. A ligação umbilical às academias francófonas em África, é explorada pelos clubes franceses como nenhum outro país no continente.
Todo este contexto histórico, geográfico, cultural, económico e social influência os jogadores e o jogo, consequentemente.
Embora o jogo Europeu seja de algum modo padronizável, quando o comparamos com o jogo de outras latitudes do globo, tem dentro dele próprio as suas particularidades, e o francês é um futebol diferente do português, nesse registo. Se olharmos para a Ligue Un, vemos um jogo mais vertiginoso, com mais transições, mais físico do que a Liga Portuguesa. Por oposição o nosso futebol tem muito do controlo tático / emocional do jogo, assente numa base técnica e decisional.
Desmontemos então o caminho e o ambiente / contexto que nos guia à raiz do futebol português, por oposição à raiz francesa.
No que à produção de jogadores diz respeito, Portugal desde há muito que produz com qualidade, embora verdadeiramente, em quantidade e qualidade aliados a preparação e exportação, o fenómeno de sucesso é no nosso país mais recente, sendo ao dia de hoje internacionalmente reconhecido.
As assimetrias são, claro está, em Portugal, demasiado evidente, o que já foi acima exposto, sendo a falta de recursos económicos e infraestruturas um obstáculo, quando comparamos, e refiro-me claramente à média e não à exceção que são os clubes mais fortes em Portugal. A base de recrutamento é, também, mais baixa por razões óbvias de quantidade de população.
No entanto esta caracterização que teria tudo para ser um obstáculo que feriria de morte a nossa indústria, tem de certo modo gerado superação e potenciado a qualificação dos recursos humanos.
Percepcionando que a formação seria um pilar para um modelo de negócio viável no nosso país, os clubes com mais capacidade de investimento reestruturam-se visando formar jogadores que não só tivessem sucesso internamente, mas sobretudo que pudessem ter sucesso no momento da exportação, até pelas grandes limitações do mercado interno, arrastando deste modo o sector para esta dinâmica que é hoje parte muito importante da viabilidade do futebol português.
“A COMPONENTE SOCIOLÓGICA PORTUGUESA SURGE (...) COMO UM DOS GRANDES FACTORES CRÍTICOS DE SUCESSO”
A componente sociológica portuguesa surge na minha opinião como um dos grandes fatores críticos de sucesso, quer na formação de jogadores, quer de treinadores. Esta questão sociológica é, pois, influenciada por todas as outras, no sentido em que as componentes estão relacionadas. Dou como exemplo o facto de, por exemplo, a esmagadora maioria dos treinadores da formação franceses de clubes profissionais, serem eles também profissionais, e refiro-me concretamente no que a contratos de trabalho e remuneração diz respeito, por oposição ao que acontece nos clubes portugueses. A necessidade de encontrar continuadamente soluções para suprir limitações, quer de jogadores, quer de treinadores resulta na aquisição de competências tais como adaptabilidade (efeito Multi Task) e resiliência que são a base para as características Técnico-Táticas do nosso futebol. O foco no controlo das emoções em jogo, antecipar e visualizar soluções do ponto de vista individual e coletivo para problemas que surgirão no jogo, o gosto pelo detalhe e até o próprio sentido coletivo do jogo, respeitando a individualidade, são caraterísticas do jogador e do treinador português que decorrem de um ambiente / contexto acima caraterizado e que marcam uma diferença quando comparamos com o futebol francês.
Esta dialética aqui caracterizada, influencia o jogo e a montante logicamente o processo de treino e nesse sentido a “escola” portuguesa está mais direcionada para a experienciação de situações-problema que visam sempre moldar comportamentos da forma de jogar enquanto equipa e com uma componente estratégica também muito presente. A “escola” francesa tem na sua génese uma grande componente física que os leva a fragmentar mais o treino nas suas diversas componentes, dando grande destaque ao desenvolvimento de questões individuais e grupais, sobretudo no futebol de formação.
Esta descrição é obviamente genérica e procura demonstrar uma tendência, havendo logicamente correntes diferentes dentro de cada “escola”, até porque como referido inicialmente a globalização, ainda que não completamente instalada na indústria do futebol, no que ao produto final diz respeito, ela tem ainda assim óbvios efeitos na nossa realidade. Aguardemos para perceber se no futuro esta tendência anulará as particularidades de cada futebol ou se haverá sempre espaço para o cunho diferenciador que embeleza este desporto, onde é possível ganhar de variadíssimas formas.